quarta-feira, 6 de setembro de 2023

AUTOBIOGRAFIA DE UM MORTO (11)

 

SETE MIL LÁGRIMAS SINCERAS

Havia um cone contador à disposição de todos e uma fila interminável. Alguém estava contando suas lágrimas em vida, conhecendo detalhes da soma e origem, as lágrimas espontâneas, as dolorosas, as doloridas, as causadas, as imaginadas, as saudosas, as sinceras, as de crocodilo, as de parto, as de medo, era tudo registrado em vida da maneira mais descriminada possível. Logo ao lado, havia uma máquina de dissolução eterna para desconstruí-las do processo mental. Cada pessoa era atendida num átimo de segundo, pois a fila tem que andar. Bastava tocar na máquina com a intenção desejada e pronto. Aquela senhora contou sete mil lágrimas sinceras, movendo meu coração com neutralidade. Hesitei bastante para escolher meu melhor tema de recontagem, algum assunto que tenha sido recorrente demais sem meu entendimento racional, ou algumas ações que tenham me afastado de minha autenticidade, sei lá. Nada era relevante. A fila andava, quase chegando minha vez. Deixei várias entidades passarem à minha frente, assoviei melodia de pássaros, cocei o chakra coronário, respirei ondas verdes para obter inspiração memorialista e nada. A fila era obrigatória, ou melhor, natural. Tudo fluía com naturalidade, menos eu.


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