MANUAL DOS ANJOS

 

 

Abra o coração antes de abrir os olhos. Acordar de bem com a vida, em pleno exercício de gratidão. Sorrir para o Criador e para todas as criaturas. Caminhar com leveza, quem sabe flutuando, da cama até suas primeiras atividades de higiene corporal. Abençoar a água límpida que lava sua face, mas abençoa também suas mãos que chegarão aos outros antes de si. Cante uma canção bonita na frente dos espelhos. Cubra-se com o perfume Konfianss para que todos sintam sua fragrância inspiradora. Massageie a omoplata ou escápulas para aquecer suas asas de anjo. Ligue sua bússola de conexão com a Fonte. Saia para as ruas do mundo sem agenda definida, com total disponibilidade para ouvir e servir, acolher e curar. Distribua pacotinhos de esperança a quem encontrar. Retire os óculos para que a luz da lucidez flua melhor de seus olhos e desague nas mentes inquietas de quem dela precisar. Ame tanto quanto respire. Ande discretamente, sem mostrar suas asas, para não atrair holofotes. No final das tardes, acompanhe quem necessitar de companhia. Ao voltar para casa, agradeça incessantemente o presente das horas vividas neste lindo planeta. Tenha um ótimo repouso no Espírito. Boa noite.

DE ONDE VEM A VIDA

 

Há muitas teorias em cada prática. Há muita biologia em cada movimento. Há muitos corpos em cada corpo. Há muita história em cada novo dia. Tudo é uma mescla de vidas. A vida vem de outras vidas e se imortaliza nos processos de morte para continuar vivendo. A vida vive nos livros, nas artes, nas civilizações. A vida vive no silêncio, no escuro, nas profundezas. A vida vive no invisível, no imensurável, no insustentável. A vida não se cansa de pulsar existência, mudando ou não de forma. A vida vem do vácuo, do vazio e do nada. A vida se refaz pela repetição, pelo aperfeiçoamento, pela extinção. A vida vive no mistério, na glória, no encantamento. A vida vive na respiração, no Espírito e na Alma. A vida vive na beleza do feio, na poesia do cacto, na ruga das antiguidades. A vida só sabe viver.

 

O AMIGO

Será fácil você saber quem é ou não seu amigo, sua amiga. Amigos não tem preço nem custo, lucro nem dividendos. Amigos tem valores. Amigos me respeitam e são respeitados por mim. Amigos confiam em mim, pois sabem poder contar comigo nas horas difíceis. Amigos são humanamente leais, dentro do possível, disponíveis o suficiente para não surgir saudade. Amigos são ótima companhia a qualquer momento. Amigos expressam afetividade até mesmo em suas palavras. Amigos constroem amizade a quatro mãos. Amigos levam o coração no sorriso, o sorriso nos braços, o abraço no coração e se doam inteiramente. Amigos materializam bênçãos divinas quando se fazem presentes. Amigos nunca esquecem os verdadeiros amigos, perto ou longe, nunca desistem deles. Amigos são atemporais.

O JUSTO

 

O justo evita os erros, condena os próprios erros, educa para os acertos, defende o direito de todos. O justo destaca a verdade, finaliza conflitos, compartilha novas oportunidades, inspira esperança. O justo não precisa vencer o jogo, basta-lhe ver a justiça acontecer. O justo quer sempre seguir em frente. O justo baseia-se em equilíbrio de percepções, promovendo o equilíbrio das emoções. O justo sente compaixão diante das injustiças, mas move-se na direção da resolução delas. O justo dá voz a quem não tem. O justo não se cansa, mesmo diante de abusos contínuos ele vocaliza a necessidade de se refazer o que foi violado. O justo faz o bem sem esperar por aplausos. O justo também confia no fator tempo para que as coisas se ajustem. O justo denuncia ilegalidade e desonestidade. O justo lembra a sociedade os valores perdidos pela insensibilidade dela. O justo é um herói sem medalhas.

 

O ADULTO

 

Maturidade é a característica principal de quem deixou de ser criança ou adolescente. O adulto entende os próprios sentimentos, respeita o espaço das outras pessoas, conhece os desejos do corpo que habita e os mantém sob atenção constante. O adulto não diz coisas somente por dizer, ele tem intenções claras e paga o preço para alcançá-las. O adulto é responsável por suas promessas e negociações, moral e legalmente. O adulto aceita trocas e investe em lucros. O adulto quer se conhecer melhor, sempre que possível. O adulto sente o peso dos compromissos, carrega o peso das decisões, prende-se no peso da idade e desenha o peso do futuro enquanto dorme. O adulto baseia-se no aprendizado para estabelecer novas conexões sociais. O adulto é fruta para ser saboreada, água para ser compartilhada, voz para ser cantada e luz para apontar caminhos.

O HONESTO

 

Há quem viva por seus valores e respire por atitudes honestas, ainda que na corda bamba das experiências humanas. O honesto é um equilibrista, sempre oscilando entre a vontade pensada e o desejo impensado, sempre tentado por si mesmo. O honesto conhece bem o mundo em que vive e dele tenta se retrair. O honesto sofre ao ver a desonestidade de tantas pessoas conhecidas. O honesto se surpreende com gestos pequenos de honestidade, os quais realimenta sua esperança num mundo melhor. O honesto aceita perder oportunidades, desde que salve sua imagem de retidão. O honesto espera para agir, pois não quer ser visto como bobo. O honesto é um ser quase solitário, querendo sempre encontrar alguém em quem acreditar. O honesto tem aversão a políticos e a fofoqueiros, a marketing e a discussões familiares. O honesto é uma ilha no mundo de concorrência desleal.

O SANTO

 

Fora do contexto religioso, há pessoas santas ou santificadas por seus atos sublimes, purificadas de segundas intenções. Os santos são pessoas comuns, desapegadas do mundo material, portadoras de olhos meigos e corações abertos, mãos disponíveis e pés incansáveis. Os santos são pessoas universais, capazes de ver e sentir o todo, capazes de se colocarem no espaço sofrível e limitado dos outros, em ordem de movê-los para lugares melhores. Os santos existem por uma causa nobre, maior do que a imagem construída de si. Os santos pertencem ao reino natural da bondade. Os santos oram o amor e o praticam na disponibilidade. Os santos choram lágrimas silenciosas de compaixão. Os santos não se anunciam, não se intitulam, não se comportam como tais. Os santos simplesmente santificaram cada momento de suas vidas com o néctar do sagrado.

O VENCEDOR

 

Para vencer na vida é preciso ser curioso e desapegado, focado e pronto a mover-se constantemente. O vencedor é um buscador nato de recursos, uma pessoa prática e atenta aos resultados. O vencedor é um estrategista até nas pequenas atitudes. O vencedor é frio por não decidir no calor das próprias emoções, mas torna-se sensível às emoções dos outros na hora de propor ou desafiar algo. O vendedor armazena na memória uma coleção de detalhes que estimulam seu aprendizado. O vencedor vence com naturalidade, com facilidade, com segurança, pois acredita não ter nada a perder. O vencedor preza as múltiplas inteligências. O vencedor não tem medo de errar, pois considera erro como falta de informação. O vencedor não se deixa levar por limitações, uma vez que se conhece muito bem como pessoa. O vencedor sabe que Ser é mais importante do que ter, apoiando-se sempre na iniciativa, na criatividade e na energia pessoal.

O VISIONÁRIO

 

Não basta ter dois olhos físicos, se eles não forem usados para vasculhar, garimpar, atentar, registrar. O visionário possui um terceiro olho, o olho da sabedoria que chega no futuro antes de todos. O visionário pode até não ter dinheiro para começar um empreendimento, mas ele tem tempo e sabe prolongar as horas do dia com eficiência. O visionário caminha de forma passiva. O visionário coloca-se no lugar dos outros para antecipar as necessidades deles e planeja como aborda-los. O visionário especializa-se mais na observação do que na comunicação, muito embora fale somente o necessário para recolher muitas informações dos outros e quando fala é certeiro na persuasão. O visionário foca sua atenção no próprio progresso, através das oportunidades abertas no mercado. O visionário pensa por si e não se apega a nenhum pensamento gestado. O visionário vê e enxerga simultaneamente.

O NEGOCIADOR

 

Tem gente que nasceu para negociar, tem tino para o dinheiro e ama levar vantagem nas trocas financeiras. Informa-se antes de negociar, aprende em cada transação, torna-se visionário ao antecipar para onde vão as tendências de mercado e não se cansa de buscar novas oportunidades. O negociante domina o mundo dos homens, fala a língua dos homens, veste-se para impressionar os homens. O negociante quer provar algo a si mesmo, constantemente, sem consciência plena do que seja esta autocobrança. O negociante é apegado mais aos resultados do que ao dinheiro, pois tornou-se viciado no prazer de lucrar com inteligência. Em suas negociações, o negociante se vê, se sente vencedor, se respeita e espera respeito dos familiares, dos quais busca um amor que nunca lhe alcança.

O INOCENTE

 

Inocência não é propriedade exclusiva das crianças. Nos adultos a inocência é confundida com bondade e imaturidade. No entanto, inocência demonstra pureza de intenções. O inocente é uma pessoa livre de agendas pessoais, sem pertencer ao mundo material, ausente de maldades. O inocente esbanja humildade e espontaneidade. O inocente navega a linha do tempo sem se apegar a ela, vivendo com muita intensidade o tempo presente. O inocente é um budista por natureza, colocando-se à disposição dos outros em todas as oportunidades apresentadas. O inocente pode ser passado para trás, pode ser esquecido pelos familiares e amigos, pode ser criticado e ofendido, porém nunca desiste de socializar-se com os demais. O inocente nos lembra do quanto nos perdemos com as distrações do mundo.

 

O ENGRAÇADINHO

 

Sabe aquela pessoa inconveniente que adora brincar com coisas sérias?  O engraçadinho não se manca, escolhe os piores momentos para falar o que não deve. O engraçadinho especializou-se em conseguir atenção das pessoas por supervalorizar o humor. Ele se acha o bom, mas acha que esconde muito bem seu nervosismo. O engraçadinho se sente excluído pelo que é, por isso representa um personagem socialmente aceitável, esperando apenas o riso como recompensa de seu estar no mundo. O engraçadinho ri da própria piada, mas se sente meio desengonçado na performance familiar. Ele se retira da cena assim que percebe não estar agradando, mas nunca sem antes dar a última palavra. O engraçadinho não teve infância, mas age como se tivesse dez anos de idade, em todas as idades.

 

O INTOLERANTE

 

A intolerância é um mal moderno, subproduto da proximidade exagerada entre os seres humanos. Diante da movimentação social rumo ao respeito pela maior diversidade possível, a intolerância se faz ouvida. O intolerante tem a voz desacostumada a se expressar livremente, desconhecendo o espaço de respeito tão necessário à convivência pacífica. O intolerante possui sérias limitações pessoais de entendimento da realidade atual. O intolerante não sabe pausar. O intolerante acredita ser dono de uma verdade única que deve ser imposta sobre todos. O intolerante agride gratuitamente, sem nenhuma ou com pouca consciência do que esteja buscando. O intolerante nada contra a correnteza. O intolerante tem agenda facilmente questionável por quem tem coração. O intolerante perdeu o trem da história.

 

O INDIGNADO

 

Justiça é um conceito maleável que percorre as mentes humanas sem papas na língua. O indignado não aceita a injustiça e quer fazê-la com as próprias mãos. O indignado tem provas contundentes que pesquisou, porém se deixa levar pelas emoções. O indignado retira o pé da realidade e parte para a construção de outras realidades menores e mais aceitáveis. O indignado confia no poder das palavras acima das ações. O indignado é visto por muitos como ignorante. O indignado recorre ao uso de agressões verbais ou físicas ao tentar se reequilibrar nas incertezas do mundo. O indignado é um ser vulnerável ao sistema. O indignado é um galo de rinha todo ferido, brigando pela própria vida. O indignado quer trazer o poder das leis, de volta onde foi retirado. O indignado é um ser inquietante diante das mentiras. Ele é um buscador de dignidades.

O MALCRIADO

 

Não é culpa de pai nem mãe o malcriado, ele nasceu com defeito de fabricação da natureza. Imaturo emocionalmente, cérebro infantilizado, o malcriado parou no tempo e se recusa a crescer. Só conhece a raiva como elemento de sobrevivência e dela se alimenta diariamente. O malcriado não sabe que é bobo, pois considera tudo tolice. O malcriado quer se ver justiceiro na força. O malcriado desorienta-se na própria ignorância ou nas próprias experiências de fracasso. O malcriado ofende a mão que o alimenta, o braço que o acolhe, o protetor que lhe dá casa e carinho. O malcriado chora escondido. O mal criado agoniza em praça pública e se isola no quarto sem espelhos. O malcriado é produto do que escolhe fazer para ganhar o que não lhe completa, ou seja, a rejeição de quem não o aceita.

 

O MALDOSO

 

Maldade é natureza e escolha, porém pode ser evitada com consciência. O maldoso é infeliz por completo, busca significância e jamais a encontra. Conheceu o poder de longe e nunca o exerce com maestria, desconhece o amor e mendiga apenas por aprovação no lugar errado. O maldoso sempre se dá mal, do começo ao fim, uma vez que acumula resistência e criticismo da maioria que testemunha sua pequenez. O maldoso arma-se do medo das pessoas para esconder o próprio. O maldoso é frio diante das vítimas, mas morno diante da justiça e precipitado diante de um holofote. O maldoso cava a própria cova e padece pelo corpo como punição de seus erros. O maldoso tem medo e inveja de Deus. O maldoso atrai energia negativa e poderosa contra si. O maldoso semeia plantas venenosas e acaba se emaranhando em seus venenos. O maldoso é esperado na esquina por outros maldosos. O maldoso mal vê que a vida se encarregará dele diante da história.

O EXIGENTE

 

O exigente confunde as pessoas com o que seja correto. O exigente manda e desmanda no tempo dos outros. O exigente tem critério único. O exigente não respeita as diferenças nem as limitações das pessoas. O exigente define o indefinido e o definha aos poucos. O exigente será lembrado por poucos e esquecido por muitos. O exigente não tem alegria de viver. O exigente pratica a injustiça até de olhos fechados. O exigente busca expressões de poder por ausentar-se do coração. O exigente desconhece o valor intrínseco das pessoas. O exigente mal percebe que faz pessoas chorarem. O exigente lança pedras na superfície calma do lago. O exigente é estrategista, objetivo, pragmático, profundo, detalhista e rígido. O exigente não sabe descansar. O exigente confia demais em si mesmo, sabe fazer o que cobra e tem pouca tolerância para com os teimosos. O exigente ama regras e leis, principalmente as que ele criou. Ser correto e ser exigente são duas coisas muuuuuuuuuuuito diferentes.

O MENTIROSO

 

A mentira tem muitas horas de voo, oito mil asas, nariz prolongado e pernas longas. A mentira nos tira o caráter. A mentira não se envergonha nem fica vermelha. A mentira não tem hora para acontecer, tamanha a sua coragem de enganar. A mentira é própria dos inseguros, dos indecisos, dos disfuncionais, daqueles que não acreditam em si mesmos. A mentira fornece dados alterados ou corrompidos. A mentira vem à tona, feito dejetos flutuando no rio sujo. A mentira não tem nada de inocente, pois nasceu semente de desvios da personalidade. A mentira cresce como erva daninha quando por ela se vicia. A mentira não existe no singular, pois uma necessita se apoiar em outra para sobreviver. A mentira é o contorcionismo das palavras, o ilusionismo das informações, o mentalismo dos defeitos. A mentira não vale um centavo.

O IMPULSIVO

 

A impulsividade é a mãe da imprudência. A impulsividade repele o arrependimento para não ter que se responsabilizar. A impulsividade só ouve a voz do instinto animalesco, sem antecipar o caos vindouro e certeiro. A impulsividade ancora seu barco na terra seca. A impulsividade se droga na farmácia da tragédia. A impulsividade engorda os olhos e emagrece o futuro. A impulsividade tem a velocidade dos raios. A impulsividade dorme no chão. A impulsividade acorda chorando por mais, sem valorizar o que recebe por força dos hábitos. A impulsividade esquece com facilidade o que fez ontem à noite. A impulsividade é ruim de contas. A impulsividade semeia mentiras deliciosas e colhe espinhos amargos. A impulsividade não tira férias e não pretende se aposentar. A impulsividade enferrujou a coerência e entrou sem querer na cadeia de sobrevivência sem propósitos. A impulsividade nunca será senhora de si.

O CONTROLADOR

 

O controlador gosta de se enganar, ao construir um reino sem súditos. O controlador fez mestrado em confusão. O controlador desconhece harmonia e perde quantas batalhas iniciar. O controlador é um descontrolado e não sabe. O controlador é aquele que chega depois e quer ser o primeiro. O controlador não devolve troco. O controlador brinca de Deus, mesmo sem ter seguidores fiéis. O controlador morde a língua no que fala. O controlador veste fantasias que não lhe cabe, desfila na passarela da arrogância e é vaiado logo que se descuida. O controlador nunca foi respeitado pelo controlado. O controlador ainda não aprendeu a viver. O controlador não controla a própria dor. O controlador não se reconhece como tal e jamais receberá reconhecimento verdadeiro.

O ESGOTADO

 

O esgotamento é aviso de que o corpo está carregando mais do que consegue. Esgotamento é a aceitação de ser burro de carga emocional. O esgotamento é não saber delegar tarefas, além de fazer a parte dos outros. O esgotamento é o desconhecimento do poder das pausas. O esgotamento é o namoro com a ansiedade, sem poder mudar a si. O esgotamento é o ato de desperdiçar belezas. O esgotamento é dançar sem música, marcar gol contra e rastejar sem ter patas. O esgotamento é estranhar a própria mente. Esgotamento é mascaramento de ambição desmedida. Esgotamento é troca de papel. Esgotamento é despreparo para lidar com pessoas. Esgotamento é limitação financeira vestida de alta performance. Esgotamento é excesso de fala ou falta de silêncio. O esgotamento é tanque vazio de combustíveis e muita estrada para rodar.

 

O PROCRASTINADOR

 

Procrastinação é deixar para fazer depois o que poderia estar pronto agora. Procrastinação é nome chic para a preguiça de si. Procrastinação é atestado público de não saber lidar com o tempo. Procrastinação é perder-se na linha do tempo e colocar as coisas no lugar errado. Procrastinação é não ter voz, não ter vez e não ter energia para se atender. Procrastinação é dar prioridade aos outros e brincar de ser ponte para que os outros passem em cima. Procrastinação é viver de teoria. Procrastinação é correr pelos outros, viver pelos outros, pagar pelos outros, sofrer pelos outros. Há uma obrigatoriedade interna de fugir da interiorização para orbitar nos problemas alheios. Procrastinação é medo de dizer “não” quando o seu corpo diz “não”. Procrastinação é viciar-se nas fugas. Procrastinação é não ouvir o próprio grito de libertação. Procrastinação é deixar-se para o fim da fila e perder o espetáculo da vida por falta de ingressos.

O CIUMENTO

 

O ciúme tem ciúmes das paredes. O ciúme não tem telhado. O ciúme diz o que não pensa e pensa o que não foi dito. O ciúme come unhas. O ciúme sofre de insônia. O ciúme morde a própria fala. O ciúme sofre de indigestão. O ciúme usa óculos escuros à noite. O ciúme treina diariamente a traição. O ciúme é um pedido sem socorro. O ciúme vale cinquenta centavos. O ciúme acorda cansado. O ciúme não troca de roupa nem de música. O ciúme não curte as festas. O ciúme precipita o bolo. O ciúme se escreve com lágrimas e sem lenços que as acolha. O ciúme mora na janela. O ciúme monitora roupas e pensamentos. O ciúme se especializa em cheiros. O ciúme morde as horas. O ciúme dorme no sofá. O ciúme fala alto. O ciúme prende os espaços dos outros. O ciúme adoece de incertezas. O ciúme contrata detetives e não acredita no relatório apresentado. O ciúme não precisa de ninguém, apenas da desconfiança.

O CONFORMADO

 

O conformado parou de pensar por si próprio e para a própria causa. O conformado não se preocupa com o próximo. O conformado aceita ser enquadrado com facilidade na fôrma que lhe oferecerem. O conformado cansou de combater, jogou a toalha no tatame, pediu ao juiz para encerrar a luta. O conformado não quer ter voz ativa. O conformado é um maria-vai-com-as-outras. O conformado é um tanque sem combustível e por isso não vai a lugar algum. O conformado é um Judas que se vende por qualquer dinheiro. O conformado é codependente dos governos. O conformado reza amém sem agradecer, ajoelha-se sem oração, dá tudo o que tem sem perceber que perdeu. O conformado jogou fora seu relógio. O conformado perdeu os dentes por querer tudo mastigado. O conformado perdeu a função social. O conformado sabe pouco do que seja dignidade.

O APEGADO

 

O apego tem mais de quatro mãos. O apego se agarra a tudo o que é parasita. O apego morde sem engolir. O apego deixa a vida pelas metades. O apego jogou fora os relógios. O apego dói a dor do ficar. O apego desconhece a estrada. O apego fugiu do horizonte e ficou com o passo parado. O apego trancou o cofre e jogou as chaves no mar. O apego não viu o trem do tempo parar na estação, dormindo de descuidos. O apego não consegue andar só. O apego viciou-se em co-dependência. O apego pede emprestado e não devolve. O apego perdeu o sentido pela força dos sentidos. O apego se justifica sem ficar vermelho. O apego gera inanição. O apego nunca vai acariciar a liberdade. O apego adoece a alma. O apego não fala idioma de passarinho. O apego culpa sempre os outros. O apego é distraído. O apego é comprido de distâncias. O apego é doce estragado, é garrafa vazia, é fala sem significância.

O IGNORANTE

 

A ignorância desconhece o divino e o luminoso, a sabedoria e a criatividade, a humildade e os talentos. A ignorância fala sem pensar e pensa que sabe falar. A ignorância é marcha ré nos caminhos perdidos. A ignorância quebra regras somente para receber atenção. A ignorância dorme acordada. A ignorância tem alergia a livros. A ignorância se veste de culta para impressionar outros ignorantes. A ignorância finge o tempo todo. A ignorância nunca foi ao céu e sofre por escolha. A ignorância mente sem perceber e nunca percebe a diferença entre o real e o imaginário. A ignorância é defensora da maldade e da raiva. A ignorância peca por querer ficar onde sempre esteve. A ignorância carece de neurônios pois lucidez não se compra. A ignorância sonha com guindastes e tábuas de salvação e diz que foi pesadelo.

O INDECISO

 

A dúvida tem duas vidas, dois caminhos e um olho só. A dúvida para e fica. A dúvida é a cor cinza da criatividade. A dúvida é um monte de palavras sem função. A dúvida é sinalização de lugar nenhum. A dúvida mata o tempo sem arrependimento. A dúvida fala a língua dos mortos. A dúvida escreve torto em linhas tortas. A dúvida carece de pontos finais. A dúvida mastiga, mas não engole. A dúvida surgiu do medo. A dúvida é caneta sem tinta. A dúvida não foi à escola. A dúvida pede e não recebe. A dúvida é a repetição do nada. A dúvida pare reticências. A dúvida conhece túneis sem saída. A dúvida é curva que não se acaba. A dúvida não tem idade. A dúvida mora na língua. A dúvida se mede por interrupções. A dúvida se estrutura na indecisão. A dúvida não sabe o que fazer com o “sim” e com o “não”. A dúvida não acredita na razão. A dúvida acumula empates. A dúvida foi embora com a morte.

O VAIDOSO

 

A vaidade move algumas pessoas. A vaidade consume outras. A vaidade entorpece os sentidos até cair de rugas. A vaidade nos tira o chão. A vaidade nos prega armadilhas. A vaidade nos corrompe por dentro. A vaidade tem data de vencimento, mas se consome mesmo vencida. A vaidade nos cega. A vaidade é fingimento daquilo que não aceitamos. A vaidade foge da verdade. A vaidade tem proporções bíblicas. A vaidade afasta pessoas. A vaidade não conta com a ajuda do tempo. A vaidade é estética sem tática. A vaidade tem custo alto. A vaidade é sócia da mentira. A vaidade tem começo, mas não tem fim. A vaidade se perde no próprio caminho. A vaidade desconhece os anjos. A vaidade é teatral. A vaidade é fogueira de críticas alheias. A vaidade é gesto de insegurança. A vaidade esconde o natural. A vaidade depende do espelho. A vaidade é terrivelmente aparente. A vaidade tem fome de elogios. A vaidade é excesso de si mesmo.

 

INVESTIGANDO NOSSA NATUREZA

 

Quero acreditar que não somos nossos acertos nem erros, muito menos nossas escolhas ou crenças, para que não sobre nada nas horas de querer julgar. Assim, toda a estrutura mundana que vivia em mim, possa cair por terra e dar lugar ao amor. Se este anseio que tanto buscamos, de um dia aprender a amar, se torne realidade a nível coletivo, entraremos no campo mais utópico que pudermos imaginar. Não é natureza humana amar sem pedir nada em troca, amar libertando e aceitando o diferente, amar incondicionalmente de forma divinal. Abrir mão da natureza humana, em nós, seria enorme desafio, em busca de nossa natureza sobrenatural. Neste caso, não precisaríamos mais da Terra, do mundo, do outro como território de aprendizagem. Voltaríamos para o espaço absoluto.

REAL TAMANHO

 

O que torna uma pessoa maior não são os títulos que consegue com seus esforços, mas sim os atos que geram frutos e se espalham como sementes mundo afora, bem como a diferença positiva que exerce um protagonismo impar na vida de muitas outras. Encontrar o seu lugar no mundo consiste em abraçar projetos, compartilhando caminhos possíveis de se seguir. Seu lugar no mundo está debaixo dos próprios pés, na iniciativa e na energia dispendida para se chegar à essência dos outros e contribuir com a proliferação da fragrância deles. Seu lugar no mundo é resultado harmonioso de suas descobertas, costuradas com fios de sabedoria. Seu lugar no mundo é a mão que procura a igualdade e a valorização de todos. Ser grande é fazer o outro se sentir maior.