Fazemos da vida um livro
fechado, muitas vezes desviando o título para não esconder a capa, deixando os
melhores propósitos na poeira da estante. Interrompemos a escrita diária,
movidos por distrações mundanas que nada acrescentam ao nosso desenvolvimento.
Censuramos os pensamentos inferiores, para que não saibam quem realmente somos
na calada da noite. Mudamos de personagens a cada interesse que se apresenta,
trocando de persona e conteúdo, na narrativa do que se passa dentro de nós.
Projetamos em nossos desejos, o final feliz daqueles que se dedicaram
heroicamente para conseguir a vitória, certos de que teremos o mesmo destino
sem nenhum esforço. Tomados pela força da ansiedade, deixamos inúmeras páginas
em branco. Tomados pela necessidade de pertencimento, rascunhamos palavras
vazias e as espalhamos aos quatro ventos da imaginação. Esvaziados do Ser,
enfeitamos a coroa do tédio e celebramos a presença da inutilidade, esta sim, a
real usurpadora de nossas escritas.
Muitos dizem que sua estória
de vida daria um livro - desculpa singela de quem não assumiu ainda a grandeza
de compartilhar com o mundo suas descobertas. Talvez pensem apenas no tal
sofrimento que recaiu sobre seus capítulos, sem saber que sofrimento é crença e
quem sofre é apenas a mente do escritor. Outros afirmam que sua história não
poderá nunca ser revelada, tamanha presença de paradigmas e segredos, escolhas
erradas e verdades que a maioria não aceita de bom grado, sem se dar conta do
medo de serem julgados pelos críticos literários de plantão.
O livro da vida é
espontâneo, não dá para planejar tudo, não pode ser copiado, não deve ser
escrito sozinho. Ele se escreve com pessoas reais, com fatos e evidências, com
falas de compromisso, com as garras da consequência. O livro da vida é mágico
somente na espera, é ficção somente na incompletude, é romance apenas na
solidão. O livro da vida nasceu crônica, cresceu autoajuda, firmou-se na
leitura de si mesma, desviou-se nos folhetins, descansou na poesia e gastou
muito de sua energia em contos de bem querer.
A narrativa de cada um se
escreve com tudo o que lhe faça sentido, ainda que questionável. Se algo nos
beneficia, merece destaque. Se algo nos engrandece, é matéria de corpo e
contracapa. Se algo foi bom demais, queremos divulgar ao mundo infeliz o quanto
somos virtualmente felizes ou, se algo nos foi traumático, o quanto somos
vítimas dos poderosos. E se acaso algo nos manifeste críveis, impomos nossa
opinião sobre os mais fracos. A narrativa individual é um grito calado de quem
ainda não se conhece por dentro, um desabafo calado de quem pensa não ter voz e
a busca desesperadamente, um pedaço de quem não se encontrou por inteiro. É a
narrativa o lençol de nosso avesso existencial, rumo à imortalidade. Para
tanto, sonhamos com a grandiosidade de nossas percepções, no anseio de sermos
validados pelo mundo e nos tornarmos um best-seller.
Fazemos história no quadro
geral e a deixamos de fazer, em muitos momentos da vida quando não aceitamos os
desafios transformadores que poderiam se tornar água divisória, quando nos omitimos
diante do mal que se espalha, quando guardamos nossos melhores sonhos no cofre
do tempo, quando somos egoístas demais, quando deixamos de pensar grande e nos
desgastamos com picuinhas, quando o destino nos chama e fingimos não ouvir por
insegurança, quando nos esquecemos do futuro de nossos filhos, mas
principalmente quando sabemos que devemos seguir adiante e não seguimos. Fazer
história está perto do que somos. Deixar de fazer história está dentro do que
gostaríamos de ser na distância, até que um dia nos tornemos mais um livro
empoeirado, na estante do destino.
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